sexta-feira, 29 de abril de 2011

O ingresso de JA na política

Cesar Vanucci *
                                                                                              

“O partido boicotou a candidatura dele.”
(João Melo Freire, ex-presidente do PMDB)


Semeador infatigável de obras, tanto no plano pessoal como empresário, quanto no plano classista como dirigente do Sistema Fiemg, José Alencar Gomes da Silva atraiu, a partir de certo momento de forma intensa as atenções do mundo político. Próceres partidários de diferentes legendas animaram-se a contatá-lo na expectativa de vê-lo assinando ficha de inscrição como militante em suas fileiras.

Os convites para cargos públicos executivos, alguns formulados mesmo antes de sua opção pela legenda do PMDB, foram insistentes e numerosos. Sabe-se com absoluta certeza, que ele recusou apelo insistente para ocupar cargo de Secretário de Estado e, por duas vezes, para desempenhar funções ministeriais no governo federal. Mais adiante, recusou também a oferta de um posto no secretariado municipal de Belo Horizonte, chegando a apontar o nome de um dileto amigo e colaborador para o cargo.

Algumas pessoas, movidas por um sentimento – digamos assim - nebuloso, resvalando entre a admiração e o despeito, diziam a propósito de sua fecunda ação em prol do desenvolvimento econômico e social à frente do Sistema Fiemg, que ele fazia tudo aquilo com o objetivo de ingressar estrondosamente na política. Erro crasso na interpretação dos fatos. O poder empreendedor de JA era um dom natural. Afloraria, exuberantemente, em qualquer circunstância, em qualquer atividade pela qual optasse. O mundo político, como de resto aconteceu com tantos outros segmentos da comunidade, encantou-se com o seu singular estilo de liderança. Com seu perfil de “fazedor do progresso”, de “contemporâneo do futuro”. Próceres partidários passaram a procurá-lo com insistência, na tentativa de persuadi-lo a participar de suas hostes. O deputado Joaquim Melo Freire, então presidente da seção mineira do PMDB, saiu-se bem na empreitada. Suas as palavras que se seguem, anotadas em depoimento à jornalista Eliane Cantanhêde: “Comecei a ter contato com ele nessa fase (gestão de JA na Fiemg). Percebi que, além de empresário vitorioso no setor têxtil, um dos maiores do Brasil, e líder empresarial arrojado, que estava revolucionando a Fiemg, ele tinha também muita sensibilidade política.”

Outro dirigente político, amigo de Alencar de longa data, confiante também na sensibilidade política de Alencar, que a essa mesma época, intensificou os contatos com o presidente do Sistema Fiemg – dou aqui meu testemunho – foi o saudoso Pio Canedo, valoroso integrante da mesma corrente política de Melo Freire. O Presidente do PMDB registra no mesmo depoimento que Alencar demorou a decidir. Arranjava sempre um jeito de “enrolar”, deixando a filiação para mais tarde.

Água mole em pedra dura..., finalmente, chegou a hora da decisão. Alencar topou o convite do PMDB. Assumiu, de cara, a vice-presidência do diretório estadual. Nessa condição, percorreu muito chão, Minas afora, fazendo contatos com correligionários. Por onde transitou deixou fortemente impressa sua marca. Seu nome para candidato a governador brotou de forma espontânea e irresistível. Levado à convenção foi aclamado pelas bases, mas enfrentou a clara hostilidade dos chamados “caciques”. Essa manifesta indisposição se manteve inalterada no curso da campanha. Os candidatos a deputado federal e estadual do PMDB, de um modo geral, revelando-se mais “peemedebistas” do que nunca naquele momento, largaram-no à própria sorte. O trabalho na captação de votos foi conduzido por ele próprio, familiares e amigos. “O partido boicotou a candidatura dele”, sustenta enfaticamente Melo Freire.

JA ficou em terceiro lugar na disputa. O segundo turno teve como concorrentes Helio Costa, primeiro colocado, e Eduardo Azeredo. Ambos disputaram o apoio de Alencar, que resolveu recomendar para o prélio decisivo o nome de Azeredo. Interessante ressaltar que o resultado final, favorecendo Eduardo Azeredo, deixou evidente o peso político pessoal de JA já naquele instante, uma vez que a votação do governador eleito traduziu praticamente o somatório dos sufrágios obtidos por ele e por Alencar na primeira etapa eleitoral.



Caminhada política triunfal


Cesar Vanucci *

“Vou entregar minha terceira idade à política.
Deixar como está não é comigo.”
(José Alencar)

Em 1998, José Alencar foi conclamado a lançar-se candidato ao Senado. As bases voltaram a atropelar a vontade dos próceres partidários, inclinados a garantir apoio a outros nomes. Desta feita, não houve como deter-lhe a caminhada triunfal. Os políticos indicados inicialmente pela cúpula do partido, apontados como favoritos pela mídia, foram se dando conta, pouco a pouco, que uma avassaladora onda de simpatia popular à volta do nome de JA, sobrepujando resistências tenazes dos caciques, acenava estridentemente com a conveniência de se baterem em retirada sob pena de amargar contundente derrota. Alencar saiu candidato na convenção. Teve enorme influência na eleição para governador de seu então correligionário Itamar Franco. Tornou-se o Senador eleito por Minas com o maior número de sufrágios até aquele momento.

Presente à festa comemorativa dos 50 anos de atuação empresarial do senador José Alencar, realizada no Palácio das Artes em Belo Horizonte, Luiz Inácio Lula da Silva empolgou-se com o que viu e ouviu. Saiu dali com a idéia de uma conjugação de forças que viria sacudir as estruturas políticas. Uma conjugação de vontades que iria favorecer a entrada em cena de uma dupla de governantes de idéias progressistas, arrojadas, impregnadas de sentimento nacional e sensibilidade social. Não foi isso mesmo que se viu ao cabo de oito anos de gestão? O “cara” e o “vice-cara” de origens humildes uniram-se em torno de um projeto nacional. Alencar respaldou Lula, ajudando a quebrar resistências e preconceitos ao nome do carismático líder operário. O que adveio de benefícios sociais dessa aliança todo brasileiro, aliás, já está calvo de saber. Repetir é chover no molhado.

Agora, o que a grande maioria não sabe é que JA foi sondado a compor, como Vice e até como candidato à Presidência, chapas pertencentes a outras legendas. Sua lealdade e solidariedade para com o companheiro de lutas e intransigente respeito aos ideais que ambos comungavam, que tão compensadores frutos proporcionaram nas ações administrativas levadas avante, desencorajaram o aprofundamento dos entendimentos propostos pelos paredros das outras agremiações partidárias.

Há uma passagem bastante sugestiva, pouco conhecida na trajetória política de JÁ, que ilustra esplendidamente a irradiante simpatia que o mesmo despertava na militância política, militância essa consciente de sua condição de liderança e capacidade como gestor.

Em 5 de abril de 2008, o Partido Republicano Brasileiro (PRB), seção de Minas, promoveu em Belo Horizonte, na Assembléia Legislativa, um grande encontro. Muita vibração cívica, público considerável. Centenas de municípios representados. Deputados federais, Deputados estaduais, Prefeitos, Vereadores praticamente de todas as siglas partidárias. O Vice, presidente de honra do Partido, como é plausível imaginar, foi a figura central.

A programação seguiu o rito costumeiro dos eventos no gênero. Mas, de repente, algo inesperado, de forte impacto político, de indiscutível sabor jornalístico, acolhido delirantemente pela assembléia, pipocou no pedaço. Numa sequência de pronunciamentos vibrantes, entrecortados de ovações, doze parlamentares de diferentes partidos, governo e oposição, apontaram, com todas as letras, sem meias palavras, o nome de José Alencar como o do mineiro melhor provido de credenciais para ocupar, em futuro pleito, a Presidência da República.

Testemunha ocular desses fatos, repórter de caminhada extensa, supus que aquele pré-lançamento de candidatura ocuparia, infalivelmente, nas horas subsequentes, considerável espaço nos registros da mídia. Ledo engano de minha parte. O testemunho formidável de milhares, no meio dezenas de profissionais da comunicação, com suas canetas, microfones e câmeras, de nada adiantou. Um silêncio de tumba etrusca baixou sobre a manifestação. Fiquei, a princípio, sem entender bulhufas. Senti-me na pele daquele protagonista de antigo programa na televisão (dirigido pelo saudoso mano Augusto Cesar) que, traduzindo perplexidade face aos incompreensíveis lances do cotidiano, costumava dizer: “Não precisa explicar. Eu só queria entender.”

Um conceito danado de intrigante de Beaumarchais, extraído de “O casamento do fígaro”, voltado para os enigmáticos bastidores da política, introduziu, na ocasião, uma frestazinha de luz no meu apoucado entendimento das coisas. Eis o que diz o renomado dramaturgo francês: “... fingir ignorar o que se sabe e saber o que se ignora; entender o que não se compreende e não escutar o que se ouve (...) eis toda a política!”

Moral da história: nalguns redutos políticos houve quem se sentisse um tanto quanto perturbado com o que andou rolando naquela convenção e este estado de espírito, pelo visto, contaminou (in)explicavelmente a mídia.



A luta contra os juros altos



“Estamos encabrestados.
Caímos numa armadilha, numa arapuca.”
(Manifestação de JA em 2003)

No exercício da vida pública, José Alencar repetiu centenas de vezes, para platéias receptivas de todas as categorias sociais, com o intuito de ser escutado, naquele estilo didático e vibrante todo seu, sensatas considerações sobre os caminhos brasileiros a serem trilhados na rota do desenvolvimento econômico e social. Sabia exprimir com certeira precisão o que a sociedade aspira. Interpretava magistralmente o sentimento das ruas com idéias como estas, transmitidas numa comemoração do “Dia da Indústria”: “Sempre condenamos os elevados preços de obras públicas e de compras do Estado. Os negociadores são, historicamente, generosos, ainda que probos e bem-intencionados. O mesmo acontece nas negociações brasileiras com a banca credora nacional e internacional e com essa coisa chamada mercado.”

Em 2003, já ocupando a Vice-Presidência da República, voltou a chamar a atenção de todos quanto à capacidade nacional de honrar suas contas. As observações estavam calcadas, na verdade, em dados preocupantes. “Temo que possamos chegar a um momento em que tais contas fujam de nosso controle, infladas pelas taxas de juros, em dimensão crescente, como vem acontecendo.” Pediu que as atenções ficassem focadas no que classificou como o verdadeiro “risco Brasil”, traduzido em números emblemáticos. Os juros – ressaltou – alcançaram a cifra de 44.9 bilhões de reais no primeiro semestre deste ano, contra 23.5 bilhões em igual período de 2002 e 17.8 bilhões no primeiro trimestre de 2001. Com base no acontecido nos doze meses de 2001 e 2002, JA projetou, então, por analogia, o que poderia vir a suceder em 2003. Em 2001, os juros somaram 86.4 bilhões, valor equivalente a 4.8 vezes os gastos verificados no primeiro trimestre do mesmo exercício. O valor foi outra vez multiplicado por 4.8 em 2002, chegando-se aos 114 bilhões de reais nos dispêndios efetivados. Conclusão da análise, emitida por um conhecedor experimentado da realidade econômica: “Gastamos de juros, em janeiro e fevereiro de 2003, 44.8 bilhões de reais que, multiplicados por 4.8, a seguir os exemplos de 2001 e 2002, nos levarão a alcançar, no final do ano, somente em despesas com juros sobre a dívida pública brasileira, a fabulosa soma de nada menos que 215 bilhões de reais, quase o dobro dos gastos verificados em 2002, um terço da carga tributaria nacional.”

José Alencar chegou a admitir, à época deste pronunciamento: estamos encabrestados. Caímos numa armadilha, numa arapuca. Mas apontou saídas. Não saídas heterodoxas, inadequadas para o caso. Apostou, uma vez mais, apoderado da contagiante esperança que sempre norteou em tudo sua postura diante da vida, na saída clássica, na solução óbvia para a correção de rumos: trabalho, muito trabalho, com ênfase para o aumento da produção e crescimento do comércio externo. “Precisamos colocar as atividades meio a serviço da produção, da geração de empregos, objetivando uma melhor distribuição da renda nacional.” Resumiu a proposta num receituário de fácil compreensão: “Superávit de contas externas pelo incremento das exportações, substituição competitiva das importações para propiciar a queda ou até mesmo a eliminação do chamado “risco Brasil”, com a consequente redução da taxa de juros, abrindo espaço para os investimentos em atividades produtivas, gerando emprego e distribuição da renda nacional, para fazer justiça aos que trabalham e constroem a grandeza do País.”

Alertas desse gênero, ele os formulou, centenas de vezes, numa pregação dir-se-á apostólica, ininterrupta, carregada de brasilidade, timbrada pelo bom senso, conhecimento de causa e lucidez nas idéias.

JA inspirava-nos, a todos nós, a manter acesa a esperança no Brasil. Num Brasil melhor, que ele, de alguma maneira, tanto dentro quanto fora do governo, ajudou afinal de contas a construir.

Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Destemor cívico de JA

Cesar Vanucci *


“O presidente Lula deu ao seu vice uma posição
 e uma dimensão que o cargo nunca teve em outros governos.”
(Delfim Neto)

A Fiemg nos tempos de José Alencar cumpriu exemplarmente o seu papel de ponta-de-lança do desenvolvimento. Promoveu memoráveis campanhas de interesse empresarial e comunitário. Estendeu o raio de influência além do agigantado universo das empresas por ela representados.

Entre as iniciativas de magnitude levadas a efeito figura o movimento reivindicatório em favor da duplicação da Rodovia Fernão Dias. Concorridíssimos encontros, com participação das mais influentes lideranças políticas e classistas, realizados em cidades da região mineira percorridas pela rodovia, favoreceram a mobilização da opinião pública em favor da idéia, apressando a elaboração do projeto e o aporte de recursos. Alencar foi o grande líder desse trabalho.

A Fiemg não se ausentou de nenhuma discussão relativa à temática econômica e política. Os planos econômicos implantados pelos governos entre 1989 e 1994 foram todos devidamente avaliados sob a supervisão do presidente do Sistema. As postulações da classe produtiva redundaram em estudos submetidos à apreciação das lideranças políticas e organismos oficiais. Não faltaram nessas manifestações registros críticos aos aspectos, pra dizer o mínimo, controversos de alguns dos posicionamentos governamentais. Caso específico do confisco das cadernetas de poupança e das aplicações financeiras operado na administração Fernando Collor.

Nos fóruns mais qualificados, pela voz de seu líder maior, a Federação das Indústrias de Minas levou preciosas contribuições ao aprimoramento da vida democrática brasileira. Foi a primeira entidade classista no país a se manifestar favorável à aplicação de medidas legais que pusessem cobro aos desmandos flagrados na administração federal e que acabaram desembocando no impedimento constitucional de Fernando Collor.

Em 1992, quando Collor cumpria o terceiro ano do mandato, a CNI – Confederação Nacional da Indústria convocou uma reunião extraordinária, no Rio de Janeiro, com o fito de examinar a crise institucional em curso. Haviam no ar receios de que o afastamento do Presidente criasse uma situação de ingovernabilidade. José Alencar adotou na reunião uma posição firme, destemida, bem ao seu estilo, que a princípio, parecia isolada, mas que, ao cabo das discussões, acabou se impondo e gerando, de certo modo, consenso. Enfatizando que a situação política projetada naquele instante mostrava-se  incontrolável e que as acusações acumuladas contra Collor eram sumamente graves, o então Presidente da Fiemg propôs que a Confederação Nacional da Indústria se expressasse, sem contrafações, em favor de uma solução estritamente legal e constitucional. Em outras palavras, o correto a fazer era apoiar o impedimento desejado pela opinião pública brasileira e adotado pelo Parlamento, garantindo-se a aplicação da fórmula sucessória prevista constitucionalmente, com a posse do vice Itamar Franco.

Como acentua a jornalista Eliane Cantanhêde, no livro “José Alencar, amor à vida”, o episódio botou em evidência o gosto e o faro político de Alencar, já evidenciados no passado em outros altivos posicionamentos. A saber: a adesão pessoal à campanha das “Diretas Já”, o apoio ao nome de Tancredo Neves na eleição indireta para Presidente, a opção por Lula contra Collor no pleito presidencial de 89, contrariando ponto de vista sustentado pela classe empresarial, esmagadoramente simpática ao político que se proclamava “caçador de marajás”.



Lula estava certo


 “Se eu tivesse conhecido o Zé Alencar antes,
 não tinha perdido tantas eleições.”
(Luiz Inácio Lula da Silva)

Eu estava ao lado de José Alencar quando ele tornou pública pela primeira vez a disposição de votar em Lula. Conto como foi.

A Diretoria Executiva da Fiemg (Federação das Indústrias de Minas Gerais) acabara de realizar sua reunião semanal na Casa da Indústria. Um grupo de jornalistas, lá fora, expressou o desejo de ouvir o presidente da entidade a respeito de uma declaração que havia sido feita, instantes antes, por um candidato à Presidência da República. Tratava-se do oponente de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição de 1989. Ele mesmo, aquele cidadão das Alagoas que, logo após a posse, resolveu confiscar a poupança das viúvas e aposentados.

A entrevista coletiva aconteceu na saída da reunião. O que o candidato havia dito, num arroubo demagógico de rematada hipocrisia, é que não lhe interessava receber voto de empresário. O que Alencar achava daquilo, indagaram os repórteres. A resposta veio curta e fulminante: - Eu já não ia votar nele mesmo. A pergunta seguinte não poderia ser outra: - Quer dizer que o senhor, então, vai votar no Lula? Foi a vez de Alencar, com a costumeira altivez, indagar: - E por que não?

A resposta rendeu manchete. Causou alvoroço. De nenhum empresário brasileiro de peso, ainda mais de um presidente de Federação, vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria, havia sido ouvido, até ali, uma afirmação tão “insólita”. Sucede que, naquele preciso momento da vida política brasileira, as lideranças empresariais atuando como um bloco granítico, conjugadamente com a grande mídia, já haviam estabelecido, de forma clara, iniludível e irretorquível, sua opção nos rumos sucessórios. Uma opção que consideravam, sem margem para “contestações suspeitosas”, a melhor para os brasileiros. O adversário do político apontado como “salvador da pátria”, destemido “caçador de marajás”, era, afinal de contas, um “operário iletrado”, “agitador contumaz”, apelidado de “sapo barbudo” nos ambientes ditos refinados. Contra a candidatura indesejável valia tudo. Inclusive botar no ar um boletim noticioso especial, em horário de grande audiência televisiva, com tendenciosa interpretação de um debate. Pois um grande industrial paulista, dirigente de central patronal poderosa, não havia antevisto, ameaçadoramente, até mesmo, em entrevista ruidosa, que poderia ocorrer um verdadeiro êxodo voluntário para o exterior de milhares de empresários e familiares, na hipótese improvável do triunfo eleitoral desse indesejável concorrente!

Nesse contexto desvairado e preconceituoso, a declaração peremptória de JA teve forte repercussão. Nos próprios arraiais da Fiemg, a rejeição ao imigrante nordestino, metalúrgico, sindicalista, roçava a unanimidade. O respeito que rodeava Alencar, admirado pelas coerente convicções democráticas e verticalidade de conduta, acabou amortecendo rapidamente os questionamentos nos corredores da Casa da Indústria. Mas houve quem, desprovido de qualificação cívica e política para fazê-lo, resolvesse contestar publicamente a declaração do presidente do Sistema Fiemg. O contestador era presidente de uma multinacional. Estrangeiro, não eleitor em nosso país obviamente, deitou falação em jornal, assinalando que a declaração de Alencar não traduzia, jeito maneira, a posição dos empresários mineiros. Lembro-me que andei registrando, por escrito, um comentário a respeito dessa despropositada intromissão. Perguntei, então: e a posição dele, a do estrangeiro, traduzia o posicionamento de quem?

Anos mais tarde, na memorável celebração dos 50 anos das atividades empresariais, amplamente vitoriosas, de JA, comparecendo como convidado à sessão festiva realizada no Palácio das Artes, em BH, da qual participaram os mais representativos líderes políticos, empresariais, classistas do país, Luiz Inácio Lula da Silva ouviu com encantamento (como, aliás, todo mundo presente), pela voz vibrante do próprio anfitrião, o relato emocionante da história do garoto humilde de Muriaé que se tornou, por força de muito trabalho e talento, o maior industrial têxtil do mundo. Saiu dali apoderado de inabalável certeza: - Encontrei meu candidato a Vice. O homem que vai me ajudar a chegar a Presidente.

Estava certo.



Lições de brasilidade


“Se tiver um império querendo
mandar assim (...) eu pego em armas!”
(José Alencar Gomes da Silva)

Alencar foi um autêntico nacionalista. Um brasileiro que acreditava, fervorosamente, nas potencialidades de seu país e nas virtualidades dos compatriotas. Um cara que se opunha, em qualquer foro ou instância, por gestos e palavras, às praticas políticas desapartadas da ética ou do sentimento nacional. Ou aos equívocos de políticas econômicas que pudessem se aprestar, às vezes, a servir de biombo para agressões aos interesses econômicos, sociais e culturais de nossa gente.

Na biografia que Eliane Cantanhêde compôs do saudoso vice, há uma passagem bem reveladora do sentimento nacionalista que ele abrigava no peito.

No curso da primeira campanha sucessória da dupla Lula-Alencar, os articuladores da chapa se empenhavam em vencer as resistências tanto de um lado quanto de outro. Ou seja, de grupos extremados do PT e de grupos ligados às elites endinheiradas. Com o fito de aproximar Lula de Olavo Setúbal, dono do Itaú, um dos homens mais ricos do país, o filho de Alencar, Josué Gomes da Silva, que herdou do pai dons da capacidade de trabalho, liderança e inteligência, promoveu um jantar. O papo corria franco. Às tantas, o banqueiro, que tinha sido Prefeito de São Paulo e Ministro de Relações Exteriores no governo Sarney, formulou uma pergunta: - O que vocês pretendem fazer com a reforma agrária? Lula respondeu. Setúbal balançou a cabeça: - O império não vai deixar.

O trecho que se segue é extraído do livro. “Em seguida, nova pergunta: - E com a reforma tributaria? Lula respondia, ele voltava a balançar a cabeça e decretava: - O império não vai deixar. Na terceira ou quarta vez, Alencar não aguentou. Jogou o guardanapo na mesa e saiu do sério: - Espera aí! Que porra é essa de império? Se tiver um império querendo mandar assim no Brasil, eu pego em armas!”

A escritora explica que o tom de Alencar não era de brincadeira. O clima pesou. Mudou-se de assunto e a situação, com a intervenção de terceiros, acalmou-se.

Lula, segundo Eliane, adorou. “Tanto que, passados os anos, em novembro de 2009, contou a história, sob risadas gerais, durante a entrega do título de presidente honorário da Fiesp a Alencar. Só omitiu, claro,”o porra.” Segundo Alencar, a reação naquele jantar foi “para mostrar a eles que não estávamos ali querendo saber o que ele queria que fizéssemos na Presidência, que não admitíamos o camarada dizer como devíamos agir.”

Os pronunciamentos de Alencar eram costumeiramente assim. Projetavam sempre o seu jeito de ser. Na vida familiar, na atividade profissional, na labuta do dia-a-dia, no diálogo do escritório, no papo descontraído em rodas de amigos e conhecidos. A autenticidade era um atributo seu. Aflorava com naturalidade nos ditos e nos fazeres. Isso ajuda, como não? a explicar a sempre crescente simpatia com que a opinião pública passou, a partir de determinada hora, a acompanhar sua caminhada.

Suas intervenções na política projetavam, exuberantemente, o conceito magistral, cheio de verdades, que tinha do exercício da vida pública. De suas palavras conseguia-se extrair sempre um enfoque clarividente dos problemas sociais, um conhecimento arguto da realidade brasileira. E mais: a crença pessoal enraizada, transmitida de viva voz e nos exemplos contagiantes das rotinas de vida, de que todo o homem público deve ser possuidor de sentimento nacional, sensibilidade social e probidade no trato dos assuntos de interesse coletivo.

JA deixou uma infinidade de lições. De humanidade e de brasilidade, sobretudo.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A saga de JA

Cesar Vanucci *


“Foi uma grande honra ter convivido
 com ele. Estamos muito emocionados.”
(Presidenta Dilma Roussef)

A biografia de José Alencar projeta a saga de um brasileiro íntegro, corajoso, líder carismático, que nunca deixou de crer na vocação de grandeza de seu país e nas virtualidades de seu povo.

Empresário muitíssimo bem sucedido, foi responsável pela implantação de indústrias - que dão ocupação a 16 mil trabalhadores - reconhecidas como verdadeiros marcos na referência têxtil mundial. Ele foi um senhor humanista. Um cara impregnado de sensibilidade social. Um administrador nato, que sempre valorizou as conquistas sociais das categorias assalariadas. Dono de cultura enciclopédica adquirida na Universidade da Vida, com domínio como poucos das temáticas pertinentes às atividades econômicas. E, também, um semeador infatigável de empreendimentos sociais.

No comentário passado, trouxemos algumas informações a respeito da obra social plantada à época em que presidiu o Sistema Fiemg. Prometemos, então, adicionar na sequência outras revelações a respeito.

A descentralização dos serviços administrativos e a interiorização das ações sociais, por meio do Sesi e Senai, foi conduzida em sua gestão com, diríamos, benfazeja obsessão. A Fiemg alargou em muito os horizontes de atuação. Isso ficou esplendidamente documentado em um sem número de iniciativas. Algumas delas: investimentos econômicos e sociais em pequenos municípios, com população inferior a 10 mil habitantes, como aconteceu, por exemplo, no Vale do Jequitinhonha, onde obreiros artesanais foram agrupados em torno de pequenas indústrias de moagem de farinha de mandioca e polvilho, de confecção, de produção de biscoitos e pães caseiros, de beneficiamento de frutas. Criação de núcleos operacionais com assistência odontológica e educacional em lugares de representação industrial diminuta, quase artesanal. Havia quem criticasse esse tipo de procedimento, com arguições de cunho indisfarçavelmente elitista. Diziam: para que levar o Sistema Fiemg a regiões de ínfima presença industrial onde praticamente a entidade nada arrecada? Aos questionadores passava desapercebida a essência da proposta de construção humana defendida por JA. A preponderância do social sobre tudo. A convicção, nascida de uma postura vanguardeira, de que o homem é a medida correta de todas as coisas. E que a economia, assim como outras relevantes manifestações do engenho e criatividade humanos, a tecnologia entre elas, não pode continuar sendo um fim em si mesma, mas um meio para se atingir um fim, sempre social. Ou seja um meio para se chegar, pela educação, saúde etc, ao bem-estar coletivo. Tem mais: JA sustentava, com fervor, que os serviços levados ao interior tinham o dom de atrair investimentos. Estava coberto de razão, mais uma vez.

Outro indicador exuberante dessa descentralização rica em resultados e dessa interiorização centrada no crescimento e progresso comunitário foi dado com a expansão do quadro sindical. Quando Alencar assumiu a presidência, o número de Sindicatos patronais filiados era de 52, na grande maioria sediados na Capital. Nos seis anos de sua gestão, esses núcleos de representação industrial aumentaram para 130. Espalhados por todas as regiões das Gerais, constituíam o conjunto de Sindicatos, numericamente falando, mais expressivo no plano da representação patronal da indústria em todo o país.

O envolvimento com as expectativas e aspirações das lideranças e comunidades do Interior ficou também evidenciado numa atividade, de interesse de trabalhadores e empresários, realizada no último ano da presença de JA à frente da Fiemg.  Como ocorria há décadas, o Sesiminas engajou-se na campanha para a escolha do “Operário Padrão”. Por determinação de Alencar, o trabalho de seleção dos candidatos  foi levado às empresas de nada menos que 390 municípios. O contingente de empresas e municípios abrangido na operação superou longe os números globais de municípios e empresas participantes do concurso no resto do Brasil.


Obsessão pelo desenvolvimento


“Era um homem extraordinário que teve uma
 força singular de amor à vida e deixou aí um vazio na política brasileira.”
(Cezar Peluzo, presidente do Supremo Tribunal Federal)

Voltamos a falar da portentosa obra de José Alencar, o Vice do povo, à frente do Sistema Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais). A obra levada avante atraiu atenções e arrancou louvores dentro e, até mesmo, fora do país. Como aconteceu, por exemplo, com a famosa “Ação Global”, reconhecida como experiência vanguardeira em simpósios mundiais ligados à temática social.

Sobre a “Ação Global” há uma revelação, de certa maneira inédita, ainda a fazer. JA, fascinado pelo programa, autorizou estudos para que pudesse ser expandido em moldes pode-se chamar de revolucionários. A idéia aprovada, colocada em pranchetas e relatórios, previa o deslocamento, com o concurso de imensas carretas, até pequenos aglomerados, situados em regiões distantes de Minas, devidamente mapeadas, das práticas de cidadania e de serviços essenciais de utilidade pública já consagradas na agenda tradicional da “Ação Global”. As carretas seriam equipadas, entre outros itens de caráter social, assistencial e educativo, com gabinetes odontológicos e palco provido de som para espetáculos de arte e projeção de filmes. Entendimentos bastante satisfatórios chegaram a ser promovidos com representantes do Exército objetivando pudessem as operações ser executadas com o eficiente concurso dos militares. Se a atuação de Alencar como dirigente no Sistema Fiemg houvesse se estendido por tempo superior aos seis anos de gestão regulamentar previstos então no estatuto, essa ação social, com toda certeza, teria sido implementada. E com retumbante êxito, não cabem dúvidas.

Um outro programa que sacudiu as estruturas foi o “Caminhos do Progresso”. Consistia em propostas inovadoras para se incrementar o desenvolvimento econômico nas regiões, com a execução paralela de ações sociais e educativas por meio do Sesi e Senai, e a difusão enfática dos valores culturais dos distantes rincões. Encontros regionais para o exame de questões relevantes se fizeram frequentes. A revista “Vida Industrial”, editada sob os auspícios da Fiemg, passou a estampar estudos sobre as riquezas, empreendimentos e potenciais para investimentos de centenas de municípios. De outra parte, a principal unidade cultural da rede sesiana, localizada em Belo Horizonte, o Centro Cultural “Nansen Araujo”, habituou-se a patrocinar eventos culturais com a participação de grupos artísticos do interior. Para os espetáculos costumava-se expedir convites especiais para pessoas, radicadas na Capital do Estado, nascidas nos municípios do interior incumbidos das apresentações. A filosofia de trabalho adotada nas instituições do Sistema, por orientação de seu dirigente, guardava sintonia com a premissa de que a interiorização do desenvolvimento econômico e social é indispensável na escalada do progresso. Alencar almejava imprimir a marca da Fiemg em todos os municípios mineiros.

Esse inusitado e fabuloso investimento em ação social, arte e cultura, nascido da sensibilidade de José Alencar, produziu na mais antiga cidade mineira, Mariana, registros fascinantes e emblemáticos. O empresário destinou recursos exclusivamente pessoais para a restauração de uma das primeiras igrejas construídas no Brasil. Bancou projeto bolado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Atendeu a uma solicitação da Arquidiocese de Mariana para participar do esforço comunitário em favor da preservação do patrimônio arquitetônico da cidade. Mas, numa agradável surpresa, optou por um templo situado fora do perímetro urbano, distante da visibilidade turística. A escolha recaiu na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, com mais de 300 anos, de arquitetura simples e sóbria, contrastante com a pintura de cores vibrantes de seu interior, localizada no distrito de Cachoeira do Brumado.

Como gestor do Sistema Fiemg, determinou, também, no âmbito do Sesi, a transformação em belo centro cultural, dotado de teatro, de um antigo cinema na praça principal de Mariana, largado às traças, utilizado como depósito.

Adotou, ainda, com relação à primeira capital de Minas, um posicionamento que serviu de estímulo ao governo do Estado a valorizar um evento que vinha sendo de certa maneira desprezado, previsto em decreto lei. Estamos falando do “Dia de Minas Gerais”. A Fiemg passou a celebrar, anualmente, em Mariana, com a Academia Marianense de Letras, presidida pelo historiador Roque Camelo, a histórica data. A comemoração reacendeu a atenção governamental. A partir de determinado momento, como era de sua obrigação legal, o governo resolveu encampá-la por inteiro.


Modelo Alencar de atuação


“O único diploma que tenho é de aluno emérito.
Ganhei da escola onde fiz o primeiro ano
 ginasial, depois de me tornar empresário.”
(José Alencar)

José Alencar era muito admirado pelos dotes de negociador. Exercitou esse dom, vida afora, na atividade empresarial. E, também, como gestor de bens de terceiros. No Sistema Fiemg, deu provas repetidas dessa singular habilidade. Orientou, com resultados eficazes, o trabalho dos encarregados das compras nas entidades da indústria, sobretudo naquela fase de efervescência sem precedentes em que os canteiros de obras com placas da Fiemg enxameavam a paisagem interiorana.

As boas negociações efetivadas permitiram ao Sistema Fiemg manter sempre um caixa respeitável. Na transferência de gestão deixou aos sucessores algo equivalente a 23 milhões de dólares. O relacionamento com os vendedores de produtos e serviços timbrava-se pela afabilidade e respeito. O volume excepcional de compras, quitadas pontualmente de conformidade com as cláusulas contratuais, não estimulava nenhum empreiteiro ou vendedor a se arriscar a encaminhar, no final do ano, uma garrafa de vinho que fosse a qualquer integrante das comissões de compras. O eventual desrespeito a itens contratuais era objeto de rigorosa avaliação crítica, doesse a quem doesse, como todos os que vivemos aquele momento estamos em condições de poder testemunhar, alinhando se necessário sugestivos dados.

Seria muito interessante que, a propósito dessa condição de negociador de JA, alguém com inclinação pra pesquisas procurasse se inteirar do desempenho – pelo que ficamos sabendo, altamente louvado – desse nosso saudoso patrício numa operação, de anos atrás, em que sua empresa, a Coteminas, aliada à Vale e Cemig, promoveu a construção de uma usina hidrelétrica. Colocado em posição chave nas negociações de compra dos equipamentos e serviços, JA conseguiu resultados estupendos para o consórcio. Algo nunca dantes visto em operações no gênero.

Temos aqui, retirado das ladeiras da memória, mais um ilustrativo episódio. Negociava-se a aquisição de uma partida considerável de equipos para implantação em serviços odontológicos nos postos do interior. Licitação já processada nos devidos trinques, com as cautelas de estilo, a firma ganhadora foi convocada para uma nova rodada de discussão. O preço voltou a cair. Uma, duas, três vezes. Quando a operação estava sendo dada por concluída, Alencar ainda arrancou mais uma dúzia de equipamentos. Digamos assim, convenceu o fabricante a fazer  uma espécie de doação para o programa social, de avantajadas proporções, levado a efeito pelo Sesi em regiões mais carentes do interior.

Quando José Alencar deixou o comando da Fiemg, o Sesiminas estava presente em 220 municípios, com 1732 pontos de serviço. O Senai, com 857 pontos de serviço, atuava em caráter permanente em 80 municípios.

As ações desenvolvidas nas entidades, na assistência social, na educação, no atendimento odontológico, na recreação e lazer, esporte e cultura, apenas para nos fixarmos nesses relevantes itens, iam bastante além dos modelos operacionais já consagrados na história amplamente vitoriosa de todas elas. O modelo Alencar de atuação era carregado, como já sublinhado, de inovações que acabavam sendo logo absorvidas em outras organizações.

Acodem-nos à memória três entre as dezenas de exemplos que a memória velha de guerra consegue guardar. No tocante à formação profissional, o Sistema lançou, naquele período, o primeiro curso de preparação de técnico de higiene dentária, um profissional com a incumbência de dar suporte ao trabalho dos dentistas. Foi um sucesso enquanto perdurou. O curso em questão foi um dos muitos empreendimentos de concepção social e educacional de vanguarda incompreensivelmente desativados após a sua gestão. Outro curso interessantíssimo, cuidadosamente planejado e implementado, cuidava da preparação de mão-de-obra especializada para encargos domésticos. O recrutamento do pessoal qualificado era imediato. Esse curso foi, igualmente, mais tarde, retirado de pauta.

Em parceria com dezenas de empresas, a Fiemg e o Sesi lançaram um programa intitulado “Nossa Sopa”. Destinava-se a atender pessoas, famílias e instituições carentes assentadas em bolsões de pobreza. O programa fornecia, gratuitamente, inclusive aos sábados e domingos, um excelente complemento alimentar, a milhares de pessoas, em favelas, acampamentos, creches e asilos. A sopa era produzida com recursos provindos das empresas conveniadas, no Restaurante do Trabalhador. Enquanto durou, ou seja, durante a administração JA, beneficiou um mundão de gente!

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um cara fabuloso


Cesar Vanucci *

“Se o Lula é o cara eu, então, sou o vice-cara.”
(Tirada bem humorada de José Alencar,
o vice do povo, diante do registro afetuoso
de Barack Obama ao Presidente Lula)

Deu-se com José Alencar coisa parecida com a de personagem ternamente retratado em magistral poema de Manuel Bandeira. Na chegada ao céu, São Pedro, o próprio, recebeu-o. Mandando abrir a porta, foi logo dizendo: - Vamos dispensar as formalidades. Trate de ir entrando.

Nada a dizer, a respeito do extraordinário ser humano que acaba de “partir primeiro” (lembrando verso de outro poeta, Camões), que já não tenha sido falado. Nas ruas e nos lares. Nas tribunas e púlpitos. Nas manchetes dos jornais. Nas cenas da televisão e nos microfones das estações de rádio. Na imensidão oceânica da navegação solidária dos internautas.

Colossal coral humano deu voz, reverentemente, a mais genuína das emoções. Exaltou por todas as formas de expressão conhecidas os dons invulgares do Vice que por mais tempo ocupou, na história brasileira, a Presidência da República. Louvou sua sabedoria e poder empreendedor. Sua conduta impecável do ponto de vista ético. A inteligência e criatividade assomadas em tudo quanto botou a mão. A crença fervorosa na democracia e o sentimento nacionalista que lhe impregnaram a vida. Sua sensibilidade social acurada na lida cotidiana e sua esperança inesgotável, brotada de impulso generoso da alma. A fé em valores transcendentes, que asseguraram pelo tempo inteiro da peregrinação pela pátria terrena a reconfortante certeza, como propõe outro poeta mais (Raul de Leone), de “que o sentido da vida e o seu arcano é a aspiração de ser divino no prazer de ser humano.”

Testemunha ocular, até por dever de ofício, de muitos acontecimentos relevantes destes nossos efervescentes tempos (na verdade, trinta e cinco anos já completados por duas vezes consecutivas), carrego a certeira convicção de que as manifestações de carinho da gente do povo, no adeus ao guerreiro JA, só podem encontrar equiparação nas despedidas dadas pelas multidões, observada a ordem cronológica, a Vargas, Juscelino e Tancredo. Basta tal constatação para se aquilatar a magnitude do real papel desempenhado por Alencar na cena pública brasileira. O sentimento das ruas não costuma falhar no julgamento de suas lideranças.

Desfrutei do privilégio de manter convivência próxima a Alencar por um bocado de tempo na Federação das Indústrias de Minas Gerais. Eu estava Superintendente Geral do Sistema Fiemg, cargo exercido, modéstia às favas, com zelo e dedicação, por três décadas, ao longo das gestões dos saudosos Fábio de Araújo Motta, Nansen Araujo e, dele próprio, JA. Sua militância como dirigente classista, principiada em Ubá, onde presidiu a Associação Comercial, estendeu-se em Belo Horizonte, num primeiro momento, ao âmbito da Associação Comercial de Minas. De sua ativa intervenção nos trabalhos da prestigiosa entidade tomava conhecimento amiúde por informações trazidas, subretudo, por Luiz de Paula Ferreira, seu leal parceiro em grandiosas empreitadas empresariais, e José Costa, saudosa e legendária figura da indústria da comunicação. Um determinado dia, Luiz de Paula, vice na Fiemg, anunciou aos demais dirigentes da casa a decisão tomada por Alencar de passar a concentrar prioritariamente suas atividades classistas na instituição representativa da indústria. Como não poderia deixar de ser, receberam-no ali com muita euforia. Ele já despontava, àquela altura, como o maior empresário do ramo têxtil no país. Galgara degrau importante na trajetória de líder patronal ao assumir a presidência do Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Estado de Minas Gerais.

No Sistema Fiemg, teve atuação fulgurante. Começou como diretor, membro e depois presidente do Conselho de Estudos Econômicos, vice-presidente e, finalmente, entre 1988 e 1994, presidente. Presidente que deixou o legado de obra incomparável, do ponto de vista de uma política empresarial centrada no desenvolvimento econômico e das ações sociais, culturais e educacionais atribuídas ao Sesi e ao Senai. O impacto das realizações foi de tal ordem que, a partir de certo momento aquele cidadão de forte personalidade e irradiante simpatia à testa da Fiemg, já admirado em muitos setores pela reluzente performance como arrojado empreendedor industrial, passou a atrair de modo todo especial a atenção da opinião pública e dos partidos políticos.

Deixo, pra sequência, o relato sobre alguma coisa dos feitos acumulados na gestão de JA no Sistema Fiemg.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

Obra social estupenda

Cesar Vanucci *

“Este título é dele.”
(Presidente Lula, ao ser homenageado em Coimbra
com o título de “doutor honoris causa”,
 referindo-se ao seu leal companheiro de jornada, José Alencar)


A passagem de José Alencar pelo Sistema Fiemg fez história. Deixou marcas cintilantes. O traquejado dirigente soube dar prosseguimento, de forma magistral, ao excelente trabalho de seus ilustres antecessores, Fábio Motta e Nansen Araujo. Expandiu consideravelmente os limites de atuação da entidade patronal propriamente dita e de seus braços social e educacional, Sesi, Senai e IEL (Instituto Euvaldo Lodi), sem falar na Casfam (Caixa de Assistência e Previdência Fábio de Araújo Motta), fundo de pensão instituído com avançadas propostas de implantação de planos na esfera previdenciária.

Com o arrojo que constituia traço peculiar de sua personalidade e o talento nato que possuía e que soube aplicar nas mais variadas contingências do trepidante jogo da vida, Alencar fez parte de diferentes conselhos da Fiemg. Nesses órgãos eram debatidas momentosas questões empresariais, econômicas e sociais. Colocava ardor e convicção nas palavras e atitudes. Trabalhador infatigável, punha permanentemente à mostra os saberes acumulados nas experiências de uma vida pessoal que teve origem bastante humilde. As intervenções no plenário e os pareceres que levava à apreciação de seus pares eram acompanhados com muito interesse. A célebre luta, que tanto empenho se lhe exigiu, pela redução dos juros começou a ganhar visibilidade midiática lá na Casa da Indústria. Ao cobrar a queda das taxas, demonstrava com dados irrefutáveis os danos que a desastrosa política dos juros acarretava para as atividades produtivas do país.

Ele já exercia o cargo de vice-presidente quando Nansen Araújo, outro vice, assumiu o comando da entidade, completando o mandato do lendário Fábio Motta, que acabara de transpor “a curva da estrada” mencionada por Fernando Pessoa no poema “Cancioneiro”. Nansen outorgou-lhe, paulatinamente, numa prova de confiança, as prerrogativas que ele próprio, na vice-presidência de Fábio, desfrutara comportando-se como uma espécie de 1º vice-presidente, função não prevista no estatuto. Nos bastidores da organização patronal pipocavam articulações com vistas à futura sucessão. Vários próceres influentes no cenário empresarial, vinculados aos sindicatos filiados, propunham seus nomes ou tinham os nomes propostos para figurar em eventuais composições de chapa. A tendência amplamente majoritária do colégio de eleitores, a partir de determinada hora, foi a de (re)eleger Nansen como presidente, com o nome de Alencar em primeiro na lista dos vice. Pode-se afirmar, sem erro, que ele atuou praticamente como 1º vice, com participação realçante nas decisões importantes, por mais de 5 anos. Nos dois mandatos posteriores, somando seis anos, ele se tornou finalmente, por força de uma liderança insofismável, presidente efetivo. Anos depois, Senador da República, a Fiemg conferiu-lhe merecidamente o título de presidente de honra, primeiro e único de sua história.

O que Alencar aprontou à frente do Sistema Fiemg pode ser classificado, sem exagero, de estupendo. Tocou o mais prodigioso conjunto de empreitadas sociais, culturais, assistenciais, educacionais, recreativas voltadas para a classe operária - e, por acréscimo, a parcelas expressivas de excluídos sociais -, jamais registrado na esfera de atuação das entidades patronais da indústria em qualquer parte do território brasileiro. Espalhou canteiros de obras, em proporção chinesa, por todas as Minas Gerais. Plantou centros de atividades, clínicas odontológicas, praças de esporte, escolas profissionalizantes, teatros, cursos, bibliotecas e por aí vai. Foi o comandante-em-chefe, presente e participativo, no febricitante teatro das operações de um exército de colaboradores, entusiasmados com os seus exemplos diuturnos, estabelecendo com cada qual um liame vigoroso de cordialidade. Liderou programas que se tornaram antológicos como iniciativas consagradas ao bem estar coletivo. Caso sem tirar nem por da famosa “Ação Global”, bolada, batizada, implementada pelo Sesiminas e disseminada, com importantes parcerias, por todo o território nacional e que é reconhecida como modelo matricial de serviços sociais levados a comunidades carentes.

Continuarei a falar adiante da obra de JA.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

De igual para igual


Cesar Vanucci *


“O Brasil soube construir uma
 relação de confiança com o mundo.”
(Ex-chanceler Celso Amorim)

Barack Obama falou e disse.
Deixou claro, nesta primeira visita a América do Sul, decorridos menos de três meses da posse de Dilma Roussef, o enorme e compreensível interesse dos Estados Unidos em fortalecer substancialmente os tradicionais laços políticos e econômicos mantidos com o Brasil. Referiu-se com apreço e carinho à Presidenta Roussef e ao seu antecessor no Planalto. Aludiu, com simpatia, à luta em que esteve engajada pela redemocratização. E, no tocante a Lula, exaltou seu passado humilde e capacidade de superação das adversidades, magistralmente evidenciada na trajetória percorrida. Propôs-nos parceria “de igual para igual”. Destacando, com vivo entusiasmo, o atual estágio da democracia brasileira, elogiou nossos avanços sociais, apontando as conquistas econômicas e políticas como um exemplo para o mundo. Fez questão em sublinhar que o Brasil não é mais simplesmente o “país do futuro”. “Para o povo do Brasil, o futuro já chegou”, asseverou. Admitindo que “nossos países nem sempre concordaram em tudo” e que, “como muitas nações, vamos ter diferenças de opinião mais pra frente”, convidou o governo brasileiro, usando a força de audiência conquistada de tempos a esta parte no cenário mundial, a empreender ações conjugadas com os Estados Unidos, “com um espírito de respeito mútuo, comprometido com o progresso que podemos fazer juntos.”

As manifestações do chefe do governo da mais poderosa nação do planeta, nessa viagem de forte acentuação simbólica, reafirmaram no espírito popular a certeza de que o Brasil é reconhecido hoje, inequivocamente, como ator de realce em enredos palpitantes vividos no palco internacional. Concorreu para desfazer manjadas cantilenas derrotistas produzidas por diminuta e barulhenta facção, sempre enfezada e de mal com a vida. Um tipo de gente que se compraz em negar sistematicamente as conquistas e valores brasileiros. Empenhada em enfatizar sempre, com tintura espalhafatosa e extrapolação crítica, as circunstâncias indesejáveis e os aspectos vulneráveis em nossa atuação como comunidade organizada. Fotografando-nos invariavelmente como um povo despojado de capacidade e dons para empreitadas importantes, fadado irremediavelmente a desempenhar papéis secundários no processo da construção humana.

Deu pra perceber, com perfeita sonoridade e cristalina clareza, a diferença da conversa do atual mandatário estadunidense comparativamente com a de outros antigos ocupantes da Casa Branca. Deu pra sentir sua disposição para o diálogo aberto, para a troca de experiências. Tudo muito diferente das posturas arrogantes vistas noutros momentos e protagonizadas por outros personagens. Obama deixou demonstrado não mais existir a possibilidade de algum dirigente de seu país, num arroubo retórico durante visita oficial, por crassa ignorância ou por petulância e insensibilidade, confundir o Brasil com a Bolívia. Confessou-se devidamente convencido da inestimável contribuição que nosso país “democrático, pacífico, infenso a visões simplistas da realidade e que soube construir uma relação de confiança com todos os vizinhos pode dar não só na nossa região, mas para além dela”, como tão lucidamente registrou, a propósito da visita, o ex-chanceler Celso Amorim.

Revelou-se consciente de algo de suma relevância. Nem tudo que é bom para os Estados Unidos é bom também para o Brasil. Doutra parte, muita coisa que é boa para o Brasil pode também ser boa para seu país.

O relacionamento entre nações, para render frutos que realmente compensem, desconhece decisões impositivas e gestos de subordinação. Ancora-se em atos propositivos que sejam bons para todos.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

Ecos da visita de Obama

Cesar Vanucci *


“O alicerce da democracia permite
o rompimento das maiores barreiras.”
(Presidenta Dilma Roussef, na
saudação ao Presidente Barack Obama)

§ Sinceramente falando, acho que o ex-Presidente Lula cometeu baita ato falho em não comparecendo ao almoço da recepção oficial oferecida ao Presidente Barack Obama. Não importa a razão arguida. Entendo singelamente que a ausência de alguém em certos acontecimentos só pode ser explicada a contento com apresentação de atestado de óbito. Mas acho, também, é bom que se diga, uma outra coisa. Entre os que criticam, de forma acerba a impensada decisão do operário que se tornou Presidente da República, muitos não mudariam a cara para censurá-lo, com igual ou maior veemência, caso tivesse resolvido marcar presença no evento. Tenho certeza, como dois e dois são quatro, que iriam dizer que ele teria baixado ali, todo empavonado, com o desedificante fito de procurar empalidecer a imagem da Presidenta Dilma.

§ E por falar em Dilma Roussef, que performance, hein?, a da Presidenta! As substanciosas exposições de motivos nos pronunciamentos dirigidos ao ilustre visitante deixaram impactante impressão. Com elogiável polidez diplomática e consciência do papel desempenhado como portavoz de uma nação soberana – que horas antes acabara de tomar no Conselho de Segurança da ONU posição não alinhada com os desejos do poderoso aliado -, a chefe do governo brasileiro pontuou um sem número de situações especiais, que clamam por necessárias e urgentes reavaliações. O protecionismo tarifário exacerbado concedido a produtos agrícolas e industriais estadunidenses para que se contraponham ao poder competitivo dos similares brasileiros foi uma das momentosas questões focalizadas. O apoio da Casa Branca ao esforço que nosso país vem desenvolvendo no sentido de garantir, como qualificado representante do bloco dos emergentes, uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas foi outro item relevante abordado. Tem-se como certo que tais temas frequentaram também a agenda das negociações reservadas cumpridas por Obama e Dilma. Esperar agora para ver o que resultará destas e de outras tratativas futuras já programadas.

§ Vai ficar difícil paca para certos agrupamentos fundamentalistas, que se opuseram raivosamente na campanha eleitoral finda à candidatura Dilma, ter que reexplicar aos que leram e ouviram suas paranóicas manifestações, aquela historinha fajuta, tão amplamente disseminada, do alegado e incontornável veto ao ingresso da Presidente em território estadunidense à conta de sua atuação política na juventude. Dilma Roussef foi homenageada com carinho e apreço singulares, no comecinho de seu governo com a visita do Presidente americano. Não teve que ir primeiramente, assim que empossada, a Washington, como era de costume proceder-se, para que pudesse receber, em nome de seu país, essa honraria.
Por outro lado, foi formalmente convidada a visitar a pátria de Obama e até já agendou esse compromisso, marcando-o para o segundo semestre deste ano. Isso aí, gente boa.

§ Um episódio isolado, está certo. Deplorável a mais não poder. Mas não de molde a empanar o brilho feérico proveniente dos eventos vividos com a memorável visita do Presidente Obama e comitiva, incluídas aí sua simpática esposa e filhas. Mesmo assim, um fato que serviu para mostrar a faceta arrogante proverbialmente detectada na atuação de alguns setores da vida estadunidense em seu relacionamento, marcado muitas vezes por grosserias e equívocos, com outras culturas. A revista a convidados nos encontros programados, promovida por agentes de segurança norte-americanos, foi de uma insolência a toda prova. O posicionamento altivo dos Ministros Fernando Pimentel e Guido Mantega, entre outros, recusando-se a se submeterem a tão absurda exigência, mesmo à custa da não participação pessoal, foi digno de louvores. A dignidade pessoal e cívica estava em jogo, como não? Imaginem só o bololô que uma determinação desse teor não desencadearia caso envolvesse, de um lado, agentes brasileiros e de outro, autoridades estadunidenses!
Relembremos, mal comparando, a ruidosa repercussão alcançada, anos atrás – de forma, por sinal, bastante incompreensível na própria mídia brasileira e junto a agentes de viagem brasileiros – por uma decisão tomada pela Polícia Federal na Alfândega enquadrando um simples turista, de nacionalidade americana, que acintosamente tentou ridicularizar o trabalho de vigilância executado pelos agentes. Como o episódio rendeu criticas! As autoridades brasileiras foram acusadas até de criar obstáculos ao turismo...

§ Na lista das demandas arroladas publicamente pela Presidente Dilma, nas saudações ao Presidente Obama, deixou de figurar um item de grande significado para a melhoria das relações entre brasileiros e americanos. É a explosiva questão do visto consular para brasileiro interessado em visitar a América. O trato dispensado pelos representantes da Embaixada, numa visão ampla, não é de quem haja absorvido a proposta de parceria respeitosa apregoada pelo Presidente Barack Obama. Muito antes, pelo contrário. É comumente preconceituoso, arrogante e, até mesmo, hostil. Carece ser revisto, o quanto antes, em prol de uma boa e civilizada convivência.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

E eu que não sabia...

Cesar Vanucci *


“Portinari realiza o milagre da arte muda:
exprimir, sem falar, uma mensagem brasileira!”
(Otto Maria Carpeaux)

Vou buscar, na meninice descontraída e na adolescência irrequieta, lembranças soltas de pura nostalgia. Estive bem próximo, em alguns poucos momentos, nessas fases risonhas da vida, de dois gênios da pintura. Aconteceu por força de circunstâncias alheias à minha vontade. Com acanhada visão das coisas, na mais santa ingenuidade, revelei-me carente de um mínimo de capacidade de percepção para avaliar, na hora certa, o real significado dessas aproximações singulares, generosamente proporcionadas pelo acaso.

Seguinte: guris, ainda nos começos ginasianos, eu e o mano Augusto Cesar frequentávamos, com assiduidade, a residência de Alberto e Dute Sabino. Nossos pais eram fraternos amigos do casal. Sentiamo-nos ali como em nossa própria casa. Albertinho, como apreciava ser chamado, atuava na área de seguros. Apreciador das artes, possuía um amigão do peito. Um cidadão de alta projeção no mundo fascinante da pintura. Morador de cidade do interior paulista. Seu nome: Cândido Portinari. Candinho pros íntimos. Os dois amigos se visitavam com freqüência. Numerosas as ocasiões, quando das idas de Portinari à casa do Albertinho, Uberaba, em que Augusto Cesar e eu recebemos convite para montar um pequeno espetáculo lítero-musical homenageando o ilustre visitante. Dono de voz belíssima, que lhe valera prêmios em programas de auditório no Rio de Janeiro, o cantorzinho Augusto já exibia, naquela época, alguns dos dons que o celebrizariam, na fase adulta, na televisão, teatro e cinema, inclusive com a conquista de um “Emmy” e de um “Ondas”. Minha participação, como declamador, recitando Castro Alves e Catulo, não passava de mero contrapeso no improvisado show. Portinari parecia partilhar do entusiasmo do casal anfitrião pela dupla mirim. Tanto isso é verdade que andou convidando os filhos de “seo” Antônio e da. Antônia para se apresentarem em sua casa, lá em Brodosqui.

Todo mundo passou batido. O Albertinho, eu não sei. Mas a ninguém, de meu núcleo familiar pelo menos, acudiu a idéia, naqueles instantes de contatos descontraídos com o genial artista, de apoderar-se de um rabiscozinho qualquer onde figurasse a assinatura célebre que legou ao mundo um punhado de obras primas, brotadas de seu pincel mágico.
Falo, agora, da outra vez em que passei batido. Constrangedoramente batido. Seria de se imaginar que, já adolescente, possuísse um pouco mais de discernimento em relação a certas coisas. Foi quando de minha primeira tentativa de fixar moradia em Belô. Ao concluir o curso médio, deixei o torrão natal à cata de oportunidades profissionais. A experiência durou ano e meio. Arranjei emprego no Departamento de Trânsito, graças à incrível Anita Rosa de Magalhães Góes, esposa do culto coronel Américo Góes, ambos de saudosa memória. Fui morar numa pensão ali na rua Rio de Janeiro, esquina com Tupis. A paisagem arquitetônica da região se compunha de casas de feição brejeira, muito diferente dos caixotes de cimento armado de hoje. Dividia quarto com colega do interior. No aposento ao lado, vivia um pintor obsedantemente fixado em sua arte. Nada afeito a contatos, era visto, diariamente, por horas, a extrair do pincel os frutos coloridos de sua pujante criatividade. Vez em quando, desvencilhava-se de trabalhos que não saiam ao seu agrado, lançando-os no cesto de lixo. Eu bem que tentei, algumas vezes, espichar conversa com aquele vizinho de papo curto, quase monossilábico. Sem êxito. Não tive, momento algum, percepção de que estava a desfrutar do privilégio de compartilhar de um mesmo espaço residencial com um mestre da pintura. De nada sabia. Ninguém, ao redor, parecia também saber. De nenhum dos outros moradores ouvi, a qualquer tempo, a mais leve referência à genialidade de Alberto da Veiga Guignard.

Querem saber duma coisa? Dá vontade, às vezes, de pedir públicas desculpas por tão abestalhada alienação.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

A SAGA LANDELL MOURA

Pacto sinistro

                                                                                              *Cesar Vanucci   “O caso Marielle abriu no...